Crueldade oficial
Por Fabio da Silva Barbosa
Não eram
dez da manhã e já vinha mancando pela calçada. Eu vinha em sentido contrário,
pensando no que escrever para esta coluna, fazendo uma seleção de lembranças e
inventando algumas coisas. Quando cheguei perto o suficiente, observei que não
era apenas o mancar, mas o corpo todo se movia como se não houvesse parte sem
dor. Da ponta dos dedos, até o pescoço. Cada membro vinha em uma posição
estranha naquele penoso caminhar.
Parando na minha frente, ela tirou o capuz do casaco e
mostrou a lateral do rosto toda arrebentada. Imaginei logo que novamente havia
tomado uma ruim de alguém que ela estivesse devendo. Não seria a primeira vez.
Ela negou e foi logo apresentando a situação.
- Tomei uma ruim da polícia. Tava traficando. Eles me
pegaram.
- Mas a essa hora da manhã? Você também não aprende.
Ela
retribuiu com um quase sorriso nascendo naquela máscara de dor. Analisei as
feridas e hematomas em suas pernas, que eram as únicas partes visíveis em seu
corpo. A minúscula bermuda contrastava com todo o resto do corpo coberto.
- Tô toda
machucada. Passaram com o carro por cima de mim.
- Mas como
fizeram isso em pleno dia? O Sol tá com tudo claro. Todo mundo pela rua.
Ninguém viu ou gritou?
-Eles me
levaram pra ruazinha. Lá tá sempre deserto. E você sabe que o povo tem medo de
falar, mesmo quando vê as coisas.
- Tinham de
ter medo é de ficar calados. Esses caras se aproveitam do medo para fazer esse
tipo de coisa. Eles não podem fazer isso. Se o pessoal fizer um barulho, duvido
que continuam. Logo no início vão aumentar a pressão pra tentar aquietar a
população, mas quando verem que o povo não se cala... Não tem força maior que o
povo.
- Pois é,
né... Pois então...
Mas o caso
dela foi muito bem preparado. Enquadraram a pinta quando ela vinha da boca. Já
tinham observado que ela saía de lá com o malote de droga em cima para vender
nos bares do bairro vizinho. Já tinham o flagrante para forjar em cima, caso
saísse sem nada, mas nem foi preciso. Tava forrada. Fizeram uma prisão
tranquila na rua principal da favela. Levaram-na para a ruazinha, onde a
tiraram do carro e começaram a agressão para que ela cuspisse as informações
sobre o tráfico local. Como ela não falava e quando parecia trazer algo,
entregava apenas o que todo mundo já sabia, colocaram-na deitada diante do
carro. Dois policiais ficaram apontando a arma para ela. O terceiro ficou mais
a diante para não deixar ninguém passar, caso alguém resolvesse fazer aquele
caminho no dia.
- As regras
são simples. Se você fizer qualquer movimento, estes dois aqui vão descarregar
em cima de você. Vou entrar naquele carro ali e vamos ver o que acontece.
- Não faz
isso.
- Vamos
deixar passar dessa, porque ainda não tínhamos explicado. Falar também não
pode. Se falar ou mexer, leva tiro. A partir de agora.
Ao acabar
de explicar, o quarto policial entrou no carro e, sem demora, ligou, acelerou e
colocou para andar. Ao passar os dois pneus da frente por cima dela, ouviu um
forte grito e sentiu o balançar do carro passando sobre o corpo. Os dois de
trás não foram muito diferentes. Só que o grito foi bem baixinho. Saltou do
carro e foi até o corpo. Os dois que estavam armados já estavam em cima do
lance. Olharam um pouco, deram alguns chutes leves pelo corpo e resolveram ir
embora.
- Aiiii...
Ela gemia
alguns momentos depois. Levou algum tempo para se por de pé e seguiu a rua até
a saída do lugar. Mesmo andando o mais rápido que podia, ainda parecia estar se
arrastando. Fiquei olhando aquela jovem mulher sumindo do meu campo de visão. Como
iria dormir no chão duro, em cima de caixa de papelão, como de hábito, com o
corpo todo machucado daquele jeito?
Lamentável
que uma boa menina como essa tenha de viver em um mundo tão cruel como este.
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