Eram comentários depreciativos de pessoas conhecidas que vendem conteúdos adultos ou algo mais. Papo chato e pesado, cheio de adjetivos ridículos e ultrapassados a pelo menos três décadas. Após escutar o suficiente, arrumei uma desculpa e me despedi, indo pegar o metrô.
O que mais me chocou era a naturalidade e o ar de superioridade que pessoas pertencentes a uma cultura tida como libertária, como o Rock'N'Roll, expressavam sobre a vida alheia. Volta e meia escrevem em redes sociais ou citam em conversas trechos e citações de livros como: Liber Aleph, Livro da Lei, Bíblia Satânica, Thelema, Cabala, e inclusive obras literárias de matriz africana, como livros dedicados à arte da quimbanda, entre outros. Isso acontecia enquanto se expressavam sobre a vida de outras pessoas do bem, que pagam seus impostos e vivem suas vidas da forma que lhes convém.
Minha indignação chegou a um nível em que eu sabia que o diálogo poderia sofrer ruídos irrecuperáveis ou até fatais. Ponderei e me retirei, como citei no início do meu relato. Ao entrar no metrô, pensei: vou ruminar isso na viagem e começar a falar sozinho, assustando os outros passageiros, ou vou escrever sobre para aliviar a tensão?
Decidi escrever, mas também pensei que escrever algo pontual sobre minha raiva da postura e palavras daqueles que, de certa forma, ofendiam pessoas que respeito e tenho estima, ficaria como uma briguinha da quinta série. Um texto cheio de mágoas e descartável. Aí pensei no mercado de trabalho, na pandemia de Covid e nas mudanças tecnológicas impulsionadas por uma mistura de tragédias pessoais, emergência sanitária, fome, ossos e novas tendências digitais que ditaram comportamentos sociais relevantes de 2020 para cá. Comecei a escrever sem pensar e fui com isso até o fim da viagem, deixei para revisar e corrigir em casa com calma, e o que saiu foi isso abaixo.
Na era pós-pandemia de COVID-19, testemunhamos uma metamorfose nas relações sociais e tecnologias, delineando uma nova face da modernidade. A classe trabalhadora tradicional, agora entrelaçada com profissionais liberais e empresários MEI, encontra-se imersa em um cenário onde a virtualidade e a conectividade moldam a dinâmica laboral.
Enquanto alguns ainda seguem os paradigmas tradicionais, outros exploram os horizontes digitais, desafiando as fronteiras convencionais. Os profissionais liberais, em especial, transcendem as limitações geográficas por meio de plataformas online, ampliando seu alcance e oportunidades.
Nesse contexto, surge uma interrogação sobre quem, de fato, detém os meios de produção. Empresários MEI e empreendedores digitais têm sua presença marcante, mas um olhar mais atento revela um paralelo intrigante com os criadores de conteúdo adulto em plataformas como Privacy e OnlyFans.
Estes últimos, muitas vezes marginalizados, emergem como protagonistas inesperados dessa transformação. Ao se apropriarem das ferramentas tecnológicas, desafiam não apenas as normas sociais, mas também a dinâmica de poder nos meios de produção. A autonomia sobre seu trabalho, característica marcante desses criadores de conteúdo adulto, levanta questionamentos sobre a verdadeira propriedade dos meios de produção na era digital.
Assim, enquanto os empresários MEI, escritores e outros tantos, buscam sua fatia no mercado online e os profissionais liberais moldam novas formas de trabalho, os vendedores de conteúdo adulto desempenham um papel singular, desafiando estigmas e redefinindo as noções de poder e produção na contemporaneidade. A modernidade, guiada pela interseção entre tecnologia e relações sociais mais intimas, revela-se como um palco onde inovação, criatividade e autonomia dialogam de maneiras inesperadas de forma natural.
E, na vanguarda dessa revolução digital, os criadores de conteúdo adulto em plataformas específicas não apenas capturam a atenção dos consumidores, mas também lançam luz sobre um dilema que transcende fronteiras. Na indústria pornográfica e fetichista brasileira, figuras conhecidas e desconhecidas, através dessa atividade autônoma, desafiam tabus sociais construídos pela igreja e sociedade envoltos em hipocrisias e falas sem propriedade ou analise das realidades sociais de milhares de brasileiros.
Esses indivíduos, alguns com ganhos líquidos notavelmente superiores à média salarial brasileira, confrontam críticas moralistas sobre a suposta venda de dignidade. Surge a indagação: o que representa vender dignidade quando os rendimentos ultrapassam em até 10 vezes o salário determinado pelo governo para um trabalhador formal, vestido e com uma carga de trabalho, muitas vezes, superior, beirando a escravidão? Quando exagero escrevendo escravidão, estou me referindo à escala vergonhosa de 6x1, que já deveria ter acabado no Brasil a muito tempo
Em um país marcado por escândalos financeiros, sexuais envolvendo políticos, médicos, empresários, líderes religiosos e outros que condenam tais práticas em nome da família tradicional e sociedade patriarcal, a ironia cínica não passa despercebida. Esses criadores de conteúdo adulto desafiam não apenas estigmas, mas também alegações de hipocrisia, revelando uma narrativa complexa onde o dinheiro e a imunidade parlamentar muitas vezes obscurecem a verdadeira face da moralidade. Diversas vezes exposta em atividades mascaradas em casas de swing e orgias colossais, regadas de drogas ilícitas em iates e mansões com vários elementos de gêneros diversos, que publicamente são criticados, atacados e condenados por esses "moralistas".
Neste cenário da modernidade, cada personagem trilha seu próprio caminho, e nas encruzilhadas da vida digital, a autonomia se revela como a verdadeira protagonista. Uma narrativa real e cotidiana que desafia não apenas os limites do convencional, mas que redefine o significado de poder, produção e dignidade, deixando uma marca indelével na trama inesgotável da história humana.
No capitalismo voraz que nos consome, precisamos de dinheiro para a manutenção básica de nossa dignidade. Tabus sociais datados e textos rasos de moralidade, proferidos por pilantras hipócritas, corruptos e vagabundos que enriquecem com propinas ou dízimos doados de bom grado por pessoas incautas e com quase nenhuma dignidade, não devem ser regra para nada no Brasil.
Vender conteúdo explícito e adulto ainda não é crime por aqui, como talvez a bancada evangélica que ocupa a Câmara e o Senado brasileiro desejem, então aproveitem.
Alexandre Chakal é carioca, pai, publicitário, jornalista independente, designer, musicista, escritor, poeta, locutor freelancer, zineiro, editor do blog Metal Reunion Zine à mais de 15 anos. Um eterno inconformado com o cenário social e as péssimas gestões políticas no país mais rico da America Latina.
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